sábado, 21 de novembro de 2009

Rosa Luxemburgo: Conselhos e partidos na revolução alemã de 1918

Por Cecilia Feijoo, do Instituto do Pensamento
Socialista Karl Marx (Argentina)*

“O mundo jamais conheceu quaisquer Judas semelhantes,
pois não se conformaram em vender uma causa sagrada,
mas cravaram a cruz com suas próprias mãos”.
Karl Liebknecht (14-15 de janeiro de 1919)

De pequena estatura e formação corporal frágil, mulher em uma época na qual a política continuava dominada pelos homens, nascida em uma terra de tragédias, em uma Polônia conspurcada, sua força parece não retroceder ante nenhum dos desafios colocados por sua época. Dirigente revolucionária de grande envergadura, a necessária para atravessar as significativas mudanças que traria o princípio do novo século XX, ela, todavia, não se alçará sozinha. Será parte de uma geração que, nascida em finais do século XIX, atravessou e enfrentou as grandes catástrofes de sua época, como a guerra imperialista, e as grandes esperanças: os primeiros passos da revolução socialista.

Analisar as reflexões de sua obra política sob o olhar implacável da crítica não é um método diferente do que a própria Rosa Luxemburgo teria escolhido para seu legado.

Organizados e não-organizados

Rosa Luxemburgo possuía um amplo conhecimento sobre as revoluções burguesas clássicas, a Inglesa do século XVII e a Francesa do século XVIII, conhecimento do qual havia extraído uma série de conclusões que utilizaria na hora de analisar e atuar sobre a dinâmica de classes na revolução proletária. Esse conhecimento profundo das revoluções burguesas havia lhe permitido, em contraposição às posturas adotadas pelos mencheviques na Rússia, sustentar que a revolução russa de 1905 não era uma revolução burguesa, e, pelo contrário, seu caráter era proletário. Posição esta que a aproximava àquela sustentada quase unicamente por Parvus e Trotski nesse momento.

Revendo o peso dirigente que naquele processo revolucionário adquiriam o proletariado e sua direção política, assim como a maturidade das relações sociais capitalistas do ponto de vista da totalidade do sistema social no qual a Rússia estava inserida, Rosa Luxemburgo tirava a conclusão do caráter proletário do processo desencadeado logo após a derrota do czarismo na Guerra russo-japonesa.

Levando em conta esta diferença entre um e outro tipo de revolução social, Rosa Luxemburgo extraía uma série de características comuns na dinâmica de ambas. Estas características compartilhadas estavam focada, por um lado, no fato de que uma vez desencadeada a revolução, as massas constituiriam por si próprias, em seus avanços, retrocessos, ziguezagues e novas voltas à ação direta, um caminho para impor os objetivos que a revolução social traça: a modificação das condições sociais de existência, a transferência da dominação de uma classe à nova classe em ascensão. Lukács indicava sobre Luxemburgo que: “sua tendência a superestimar o elemento orgânico da evolução se manifestava simplesmente na convicção dogmática de que se produz ‘na medida da necessidade social real, o meio de satisfazê-la, na medida do problema, sua solução’” . Rosa Luxemburgo e a geração de revolucionários a qual pertenceu, entre os quais estavam Karl Liebknecht, Leo Jogiches, Lênin, entre outros, enfrentarão os problemas e profundas modificações que estavam acontecendo tanto na base da dominação capitalista, como em suas alturas.

Na Alemanha, enquanto setores cada vez mais amplos dos trabalhadores e das massas eram organizados pela Social-Democracia nos sindicatos e organizações sociais, gozando dos benefícios da estabilidade institucional do país, recebendo benefícios sociais, avançando em sua educação cultural, na Rússia um proletariado mais atrasado culturalmente, com menor grau de “organização”, assistia à escola da luta espontânea e a luta revolucionária de 1905.

Estas desigualdades nas condições do movimento operário de ambos os países geravam uma falsa oposição entre organizados e não-organizados, por um lado, e massas avançadas e setores atrasados, por outro. Rosa Luxemburgo insistia sobre a forma contemplativa pela qual a Social-Democracia apreciava sua construção. Chamava atenção para o fato de que, inclusive na Alemanha, onde o SPD organizava um milhão de afiliados e quase dois milhões nos sindicatos, a imensa maioria dos setores da classe operária, especialmente as mais atrasadas social e culturalmente, não faziam parte destas organizações. Era consciente, por outro lado, de que estas organizações se adaptavam à consciência média dos setores mais acomodados dos trabalhadores (a chamada “aristocracia operária”), reproduzindo um espírito corporativo e de casta que era estranho ao marxismo.

Rosa Luxemburgo insistia na necessidade de que a Social-Democracia reivindicasse e educasse os setores não-organizados mediante a ação propagandística e a ação direta. E apontava que seria uma ilusão acreditar que a classe operária evoluiria de forma homogênea: “Assim como os distintos países refletem os mais variados níveis de desenvolvimento, dentro de cada país se revelam as distintas camadas da mesma classe operária. Mas a história não espera que os países mais avançados e as camadas mais avançadas se fundam para que toda a massa avance simetricamente como uma só coluna. Basta que os setores melhor preparados apenas despertem, as condições alcançam a maturidade necessária, e rapidamente, na tempestade revolucionária, se recupera terreno, se nivelam as desigualdades e todo o ritmo do progresso social muda subitamente e avança velozmente” .

As desigualdades sociais e políticas dos trabalhadores e das massas oprimidas, assim como a sobreposição de distintos setores e distintas experiências, não são um problema alheio à nossa época, na qual, apesar de seu retrocesso, os sindicatos, os movimentos sociais e os partidos configuram o cenário no qual se desenvolve a luta de classes. O acento colocado na espontaneidade da ação das massas estava posto, na estratégia de Rosa Luxemburgo, na relação direta com a necessidade de incorporar à luta política os setores não-organizados. Apenas admitindo o limite que representavam as organizações como os sindicatos frente ao “interesse do conjunto da classe operária”, é que se poderia formular a estratégia do marxismo.

Um elemento novo aparece então claramente no século XXA, como parte do fenômeno do imperialismo, gravando suas marcas no corpo da classe operária. Este fenômeno será denominado politicamente como “oportunismo”: a corrupção das camadas superiores do proletariado, combinada com a influência ideológica crescente da pequena-burguesia acomodada sobre os partidos do proletariado. Este é o grande obstáculo que Lênin e Rosa Luxemburgo enfrentaram. Rosa Luxemburgo desnudou o fenômeno sociológico como arma explicativa do conservadorismo organizativo e políticos do SPD alemão. Soube ver antes que todos, no “fatalismo” da socialdemocracia, o crescente conservadorismo e a corrupção ideológica dos líderes, o peso dos setores acomodados da classe operária na direção dos militantes sindicais do partido e a adaptação ao jogo parlamentarista da Monarquia constitucional alemã. Em sua formulação estratégica, este elemento a fez inclinar-se ainda mais a apostar na ação espontânea das massas unida à luta teórica marxista . Lênin procurou resolver este mesmo problema na esfera da política, colocando a necessidade de separar organizativamente revolucionários de oportunistas, algo que Rosa não concordava, mas que retrospectivamente se mostrou correto .

Os paradoxos da organização revolucionária

As posições que Rosa Luxemburgo foi adotando em torno ao problema do partido não foram estáticas. Antes da revolução de 1905 na Rússia, percebe-se nela uma supervalorização da ação espontânea das massas sobre a ação do partido, e uma identificação entre classe e organização política: “a socialdemocracia não está unida ao proletariado. É o proletariado” . Em Greve de massas, partido e sindicatos afirmou que o partido agrupa uma fração do proletariado e sua intervenção deve atuar como acelerador da luta de classes: “Os socialdemocratas constituem a vanguarda mais esclarecida e consciente do proletariado. Não podem nem ao menos se atrever a esperar de modo fatalista, com os braços cruzados, o advento da “situação revolucionária”, aquela que, em toda mobilização popular espontânea, cai das nuvens. Pelo contrário, agora, como sempre, devem acelerar o desenvolvimento dos acontecimentos. Isto não pode ser feito levantando a ‘consigna’ de greve de massas ao revés e em qualquer momento, mas, antes de tudo, propagando ante às camadas mais amplas do proletariado o advento inevitável do período revolucionários, os fatores sociais internos que o provocam e as conseqüências políticas do mesmo” .

Somente após a traição do SPD frente à guerra imperialista Rosa Luxemburgo postulou que o partido constitui um elemento decisivo, ao constatar que o peso que a atitude do partido tinha para a tranqüilidade da classe dominante em seus objetivos belicosos. Mas, como devia conformar-se esse “elemento decisivo”?. Concretamente, a organização revolucionária que Rosa Luxemburgo integrava havia se reduzido a uma liga de propaganda que tentou influir primeiro sobre o SPD, depois sobre a base das duas grandes frações nas quais havia se dividido o partido –os Majoritários (SPD) e os Independentes (USPD) – e, finalmente, em dezembro de 1918, fundou o Partido Comunista Espartaquista . A guerra demonstrou, junto com a Revolução Russa, que já não se poderia regressar aos grandes partidos operários com tendências internas ou alas. A restrita “liberdade” da qual gozava a ala esquerda no SPD pôde se sustentar até a guerra, mas com o advento da mesma e, logo após, com o início da revolução alemã, as antigas frações do partido estarão em campos distinto na guerra civil.

O embate de Luxemburgo com Lênin girou em torno de seu rechaço à idéia de um partido de militantes profissionais, fortemente disciplinados, delimitado ideologicamente, com capacidade de ação e direção clara na intervenção na luta de classes. Sua própria concepção de partido oscilou ao calor do debate em ambos os lados do continente. Identificada com a ala esquerda do SPD, só atingiu notoriedade pública por fora dos círculos intelectuais e dirigentes do partido quando se desencadeou na Alemanha um processo de ascensão grevista que chegou a abarcar um milhão e meio de trabalhadores. Estas greves, que se desenvolveram em 1910, concederam à Rosa Luxemburgo a possibilidade de tornar suas posições conhecidas na base militante do partido. Foi sua época de grande oradora em atos. As posições da ala esquerda, em contexto de grandes greves e manifestações de massas que reivindicavam o sufrágio universal, constituíam um perigo para o SPD, que não estava disposto a defender a greve política. Isso, em parte, foi o que levou à ruptura entre Rosa Luxemburgo e Karl Kautsky, que anteriormente haviam estabelecido uma relação próxima. A partir desse momento, os setores de esquerda foram marginalizados, mediante mecanismos burocráticos, de suas posições na organização, incluindo Rosa Luxemburgo .

Em seus primeiros escritos, Luxemburgo tendia a postular que o partido era um instrumento auxiliar da revolução social. Esta posição estava contraposta à idéia leninista de um partido centralizado e disciplinado. Segundo Luxemburgo, um partido como o que propunha Lênina só poderia favorecer o isolamento da Social-Democracia Russa frente às massas operárias, o que o transformaria com o tempo um obstáculo para a própria ação revolucionário dos trabalhadores. Em suas palavras: “O ágil acrobata não percebe que o único “sujeito” que merece o papel de dirigente é o “ego” coletivo da classe operária. A classe operária exige o direito de cometer seus erros e aprender na dialética da história (...) Falemos claramente. Historicamente, os erros cometidos por um movimento verdadeiramente revolucionário são infinitamente mais frutíferos que a infalibilidade do Comitê Central mais astuto” .
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O dilema que coloca seu texto Problemas organizativos da socialdemocracia conserva, sem embargo, toda sua atualidade ao identificar as pressões às quais estão submetidos os núcleos revolucionários, sem por isso dar uma solução acertada ao problema:”se desprende que a melhor maneira pela qual pode avançar o movimento é oscilando entre os dois perigos que o cercam constantemente. Um é a perda de seu caráter massivo; o outro é o abandono de seu objetivo. Um é o perigo de retroceder ao estado de seita; o outro, o perigo de converter-se em um movimento para a reforma social burguesa”. Este dilema atravessará todo o período de preparação política frente à catástrofe da guerra, atuando no desenvolvimento ou na traição do ascenso revolucionário de 1918, e atuando, logo depois, durante todo o período posterior, quando o stalinismo se desenvolvia na URSS e se transformava em um novo obstáculo frente à revolução socialista.

Como resolvê-lo ou que soluções se colocaram ao mesmo foi um dos debates mais ricos do marxismo clássico. Não era um problema que Marx havia podido prever em seu tempo. A Comuna de Paris de 1871, que não contou com uma direção nem clara, nem centralizada, teve à sua frente um conglomerado de tendências que iam de revolucionárias a reformistas. De todo modo, essas correntes foram arrastadas pela “ação espontânea” das massas à correnteza revolucionária, pondo em pé a primeira experiência de poder dos trabalhadores: a Comuna. Outras seriam as conclusões das experiências revolucionárias do século XX

Conselhos e partidos na revolução alemã de 1918

Houve um ponto substancial no qual Rosa Luxemburgo não modificou sua postura, ao contrário, por exemplo, de Trotski, que o fez: as características do partido revolucionário. Apena o importante trabalho de Pierre Broué sobre a revolução Alemã dá conta do peso que teve a ausência de um partido de tipo leninista no fato de que a democracia dos conselhos operários não pudesse triunfar nas primeiras jornadas revolucionárias. Broué afirmou que sob a influência do levante de janeiro de 1919, em seus últimos dias, “Rosa Luxemburgo parece aproximar-se da concepção de partido revolucionário que até então sempre havia combatido” . Este elemento significa que, para além da experiência russa, as características do partido de Lênin não respondem apenas a particularidades russas, mas, pelo contrário, muitas dela são também vitais para a estratégia marxista no ocidente avançado.

A experiência bolchevique deixava o ensinamento sobre a necessidade de preparar no período prévio ao ascenso revolucionário um núcleo militante suficientemente flexível para realizar alianças e rupturas, mas por sua vez inflexível ideologicamente, características necessárias para fazer avançar a experiência política das massas na medida em que possibilita seu triunfo revolucionário . Apesar de passar momentos nos quais o partido crescia e se nutria de militantes, como durante a revolução de 1905, e períodos de retrocesso e isolamento nos quais o núcleo revolucionário se contraía, o bolchevismo pôde atuar da maneira correta frente ao processo da revolução russa de 1917, ganhando o apoio das massas operárias para sua posição. Será contrária a posição de Rosa Luxemburgo, que tendia à unidade organizativa com as demais frações políticas do SPD em função de garantir a “massificação” do partido do proletariado, uma vez que sustentava com firmeza a delimitação ideológica como forma de impedir a conversão do partido “em um movimento para a reforma social burguesa”. A ausência de delimitação organizativa, e decorrente disso, a ausência de uma geração de operários e militantes forjados e disciplinados nesta escola, é o que, em parte, explica os problemas que atravessou a revolução alemã.

É fundamental, a esta altura, levar em conta mais dois elementos: o primeiro deles, o peso que o partido reformista dos trabalhadores e as direções dos sindicatos possuíam frente à ação das massas. Em segundo lugar, como atua o enraizamento da tradição do parlamentarismo e a democracia burguesa em setores amplos da classe trabalhadora.

O resultado das manifestações de 7 e 8 de novembro de 1918 é emblemático nesse sentido. Dois exércitos a ponto de se enfrentarem encontram-se cara a cara nas ruas de Berlim. De um lado, as massas operárias, seus dirigentes radicais, os delegados de fábrica, a esquerda espartaquista e os Independentes. Na sua frente encontram-se os generais de Max de Baden, dispostos a uma defesa incondicional do regime dos junkers e da burguesia. As tropas destes últimos estavam hesitantes. A decomposição do exército frente à derrota alemã na guerra, a propaganda bolchevique no front ocidental e a negativa de alguns batalhões de disparara contra seus “companheiros” começam a criar dúvidas sobre a atitude e a disciplina da tropa. Os Majoritários realizam gestões desesperadas, comunicam-se com o Alto Comando Alemão e com os ministros do Kaiser. Os Majoritários argumentam: é fundamental que não haja enfrentamentos armados, é a única maneira de manter sua influência sobre as massas e impedir o amadurecimento do setor “extremista”.

Os generais a ponto de iniciar a repressão contra a mobilização recebem um chamado com uma ordem “estranha”: iniciar a retirada e, muito importante, evitar qualquer tipo de enfrentamento armado. Os generais se retiram desconcertados. É o primeiro ato da revolução. O 9 de fevereiro foi o início de uma revolução na qual o aparato militar do antigo regime ficou intacto. É o primeiro triunfo dos Majoritários para manter a ordem e evitar uma “revolução Bolchevique”. O Kaiser, por intermédio de uma ordem emitida pelo chanceler Max de Baden, admite e tem acordo em formar um governo encabeçado pelos Social-democratas e liberais. Duas semanas depois, diante da continuidade das greves operárias, a associação patronal alemã outorga aos sindicatos toda uma série de demandas econômicas: jornadas de 8 horas, aumento salarial, direitos de controle dos sindicatos sobre aspectos da produção, entre outras .

Os majoritários se apressaram a formar um governo paralelo. Ainda que eles não sejam representantes do governo legal, chamam aos Independentes a formar um Conselho de Comissários do Povo. Colocam-se à frente da onda conselhista. A revolução alemã dá a sensação de uma interminável quantidade de medidas e ações espontâneas das massas e dos grupos radicas e, por outro lado, um conservadorismo extremo em sua representação conselhista.

O caráter e os debates da primeira e única reunião do Congresso geral dos conselhos realizada no circo Busch, em dezembro de 1918 , demonstram este elemento. Os espartaquistas estão em pleno processo de ruptura com os Independentes e de fundação do Partido Comunista (E). Sua debilidade dentro da instituição revolucionária não poderia ser maior: contam com apenas 10 representantes sobre um total de 489 delegados partidários. Sua figura mais conhecida, Liebknecht, não tem representação e se vê obrigado a atuar de forma extra-parlamentar, situação contrária a dos bolcheviques no primeiro Congresso dos Sovietes, onde haviam sido uma minoria, mas significativa, e Lênin se encontrava dentro da sala.

Os espartaquistas utilizaram a mobilização extra-parlamentar das massas para influir sobre o Congresso, mas não obteriam os resultados buscados: “bruscamente as portas da sala se abrem, frente à poltrona presidencial. Uma delegação de operários faz sua entrada e reclama, ‘em nome de 250 mil revolucionários berlinenses’ a supressão do governo Ebert, a proclamação de uma ditadura dos conselhos, o armamento do proletariado, a formação de uma guarda vermelha, o chamado à revolução mundial Ao mesmo tempo, circula o rumor de que Liebknecht mantém um discurso sedicioso frente à câmara dos deputados” . Há uma segunda mobilização que interrompe o curso normal da sessão, desta vez com Liebknecht à frente. Sobre esse momento, diz Rosa Luxemburgo: “em nossa opinião, em nada censuramos a emoção e a paixão sem freio das massas, nem sequer quando na primeira sessão dos Conselhos de operários e soldados, no Circo Busch, esta emoção se voltava inteiramente contra a nossa. Quando os soldados apontavam com seus fuzis ao camarada Liebknecht, nós combatíamos aqueles que com uma sórdida demagogia orientavam para um falso caminho a vontade das massas de tomar o céu por assalto; nos esforçávamos e nos esforçamos para dar às massas uma clara consciência da situação e seus objetivos .

O primeiro erro de Rosa Luxemburgo é atribuir o peso que o SPD e o USPD têm na sessão do Congresso dos Conselhos à espontaneidade e o entusiasmo das massas. Ainda que os delegados do congresso tivessem sido votados nas primeiras semanas de novembro, e a experiência das massas frente ao governo social-democrata de Ebert havia avançado, a representação dos reformistas tinha a ver com seu peso e sua ação política. A situação havia levado aos Majoritários (SPD) a se colocaram à frente do processo conselhista para limitá-lo e liquidá-lo.

Por não existir um forte peso e uma política clara e homogênea nas fileiras da ala revolucionária, o desfecho dos acontecimentos se torna extremamente acelerado. Este elemento vai ser chave para entender o calendário revolucionário alemão. A ação antecipada dos setores avançados dos trabalhadores, (o “julho” da revolução russa) se dão a apenas dois meses do início da revolução.

É a debilidade dos revolucionários o que impede ao PC (E) realizar as grandes manobras de classe que haviam realizado os bolcheviques na Rússia. Para Lênin, estes giros políticos bruscos puderam ser realizados porque o Partido Bolchevique pôde aprender, ao largo de 15 anos, as distintas formas de luta, legal e ilegal, soube aproveitar os momentos de auge revolucionário, mas também se educar nos momentos em que havia que retroceder na ordem, recuar, voltar ao trabalho ilegal, “adotar métodos ‘incômodos’ para designar, formar ou conservar ‘grupos dirigentes’” . Assim, os bolcheviques puderam passar da agitação e atuação mediante a exigência aos mencheviques e Socialistas –Revolucionários de que os conselhos tomasse o poder em suas mãos, a se colocar à frente da ação antecipada e semi-insurrecional de julho para conter e conservar a vanguarda o mais intacta o possível; passar rapidamente à clandestinidade frente à reação e, quando a onda revolucionário voltou a brotar, chamar as massas a renovas os mandatos nos conselhos e preparar a tomada do poder, possibilitando a ação revolucionária dos sovietes.

Por el contrario, los Mayoritarios no cedieron sino que colaboraron y actuaron de manera contrarrevolucionaria frente a las tendencias revolucionarias de las masas, y fundamentalmente frente a su dirección. Ellos descabezaron, con sus propias manos, al proletariado, concertando el asesinato de Rosa y Karl.

As últimas reflexões de Rosa Luxemburgo dão contorno a um elemento fundamental para analisar o processo revolucionário em países avançados ou em países com forte enraizamento da democracia burguesa. Rosa avaliava que a política da Social-Democracia, assim como a dos Independentes, fortalecia a ação da contra-revolução, o terror branco. Esta avaliação a levou, em seus últimos momentos, a descartar a possibilidade de “compromissos” ou de exigências para desmascarar a ação dos reacionários. Uma primeira crítica a esta posição é realizada por Paul Frölich. Segundo ele, os Independentes cumpriram o papel dos mencheviques na revolução russa, os quais haviam capitulado à reação, mas não haviam sido eles os que prepararam as ações contra-revolucionárias diretamente, ao menos não até depois da tomada do poder pelos bolcheviques . Ao contrário, os Majoritários não cederam, mas colaboraram e atuaram de maneira contra-revolucionária frente às tendências revolucionárias das massas e, fundamentalmente, frente à sua direção. Eles decapitaram com suas próprias mãos o proletariado, cometendo o assassinato de Rosa e Karl.

Esse último aspecto é significativo. A contra-revolução não apresenta o rosto do antigo regime, mas o do próprio reformismo que atua, na hora decisiva, de forma contra-revolucionária frente à vanguarda. Frente as massas, atuou de maneira reacionária, primeiro desviando seu impulso e aprisionando-o na Assembléia Constituinte, e, logo depois, mediante à formação da república de Weimar, sem conseguir deter o enfrentamento das classes antagônicas, que terminará, anos mais tarde, na ascensão do nazismo. Os revolucionários alemães não contavam com uma organização revolucionária à altura da tarefa histórica, apesar de possuir dirigente do nível de Luxemburgo ou Liebknecht. Por outro lado, a reação era muito mais forte porque contava com um enorme aliado, o SPD reformista, integrado e adaptado aos benefícios do regime da democracia burguesa.

Reflexões à sombra do stalinismo

Soviet ou conselhos operários, Assembléia Constituinte e partido revolucionário serão três dos conceitos sobre os quais se voltará diversas vezes na tentativa de decifrar os complexos fenômenos que o século XX atravessou, assim como a atualidade da tradição revolucionária do marxismo. Serão vários os autores que voltam, retrospectivamente, o olhar a Rosa Luxemburgo para explicar um fenômeno que ela não viu, nem pôde antecipar: o stalinismo.

Aqueles que destacam uma particular concepção de democracia socialista e o conselhismo de Rosa Luxemburgo indicam que é a sua concepção de partido revolucionário o que haveria permitido garantir o exercício efetivo da democracia dos conselhos operários sob um regime socialista.

Esta postura é desenvolvida por Toni Negri, para quem o “compromisso leninista” entre o partido e o soviet só poderia terminar no eclipse do segundo pelo primeiro. Negri se pergunta: “Por que o compromisso se converte em curto-circuito? Por que, em pouco tempo, a síntese se mostra impossível, fazendo herdar, junto a um extraordinário deslocamento teórico do problema, uma nova crise histórica?” Esta é a questão legada por Rosa Luxemburgo segundo Negri. Ela “não possui dúvidas sobre a compatibilidade da ditadura do proletariado e o sufrágio universal” Ademais, “segundo Rosa Luxemburgo não existem condições objetivas que possam bloquear a realização do princípio constituinte (...) O curto-circuito do compromisso leninista aparece aqui ao lado das condições subjetivas do processo: insiste Rosa Luxemburgo que a participação democrática não está sincronicamente presente com os outros elementos” . Desta maneira, identifica nas “condições subjetivas” (a política de Lênin) a causa da incompatibilidade a longo prazo entre o partido revolucionário e o conselho operário. Sua postura despreza as “condições objetivas”: o isolamento russo gerado pela traição da revolução alemã, a ofensiva dos exércitos imperialistas e dos Brancos sobre o nascente Estado, a passagem de oposição para o combate aos sovietes pelos SR de Esquerda e os mencheviques, a necessidade do proletariado em fazer concessões aos camponeses acomodados sob a NEP, entre outras.

Daniel Bensaïd fará uma leitura diferente. “As advertências de Rosa ganham então, retrospectivamente, todo o seu sentido. Temia em 1918 que as medidas de exceção, temporariamente justificadas, se transformassem em regra, em nome de uma concepção puramente instrumental do Estado enquanto aparato de dominação de uma classe sobre outra” . Para Bensaid, Luxemburgo representa uma crítica acertada e uma alternativa frente à concepção de “estado de exceção” bolchevique. A partir dessa conclusão, para o autor, se desprende a necessidade de voltar à consigna de “conselho eleito e revogabilidade dos cargos”, isso é, volta a colocar que o governo socialista apenas pode ancorar-se em algum tipo de representação jurídica apoiado no sufrágio universal e não nos conselhos operários.

A opinião de Rosa Luxemburgo sobre a dissolução da Assembléia Constituinte pelos bolcheviques foi superada em parte pela modificação de sua posição sob os golpes da experiência revolucionária alemã . Esta opinião, que Luxemburgo sustentou nesse momento, estava baseada em uma consideração “sociológica” e em uma consideração “política”. Do ponto de vista sociológico, opinava que o Soviet era um “anacronismo, uma antecipação de uma situação jurídica conveniente sobre uma base econômica socialista já realizada, e não para o período de transição da ditadura do proletariado” . O retrocesso industrial e o peso que ainda tinha o campesinato na estrutura social pós-revolucionária impedia que o Soviet fosse a estrutura social na qual se apoiasse a ditadura revolucionária, razão pela qual esta só seria possível em uma sociedade na qual a imensa maioria de seus integrantes pertencessem ao proletariado.

Do ponto de vista político, apenas a existência do Soviet junto à Assembléia Constituinte poderia expressa de forma plena as desigualdades entre as classes oprimidas que subsistem no período de transição: “a espinha dorsal devem ser os sovietes, mas também a Constituinte e o sufrágio universal”

Trotsky vê nas distorções da representação política o próprio caráter de toda forma de representação política, inclusive na mais democrática: o Soviet. Mas o Soviet permite que as distorções sejam corrigidas com maior rapidez. O caráter do parlamento dos explorados e dos oprimidos e a flexibilidade da forma soviética permitem expressar as mudanças nos estados de ânimo das massas. Pelo contrário, Luxemburgo resgata o elemento democrático da Assembléia Constituinte frente ao Soviet apenas do ponto de vista jurídico, e para ela as modificações nos estados de ânimo das massas atuam sobre toda representação parlamentar: “toda experiência histórica nos mostra o contrário, que a opinião pública influencia constantemente as instituições representativas, as penetra, as dirige (...) Certamente, toda instituição democrática, como toda instituição humana, tem seus limite e suas debilidades. Mas o remédio encontrado por Lênin e Trotski –suprimir diretamente a democracia- é pior que o mal que se supõe curar: obstrui a fonte viva de onde poderiam brotar as correções às imperfeições congênitas das instituições sociais, a vida política ativa, enérgica, sem travas da grande maioria das massas populares” .

A confiança na mobilização corretiva das massas frente a esse parlamento de caráter semi-burguês (a dissoluta Assembléia Constituinte russa) no período revolucionário era de importância vital em sua leitura, questão que encobria a superioridade democrática do Soviet como forma representativa da ditadura do proletariado. Desde o início do desenvolvimento dos conselhos operários e de soldados alemães, Rosa Luxemburgo postulará que o poder deve estar nas mãos dos Conselhos de Operários e Soldados: “Camaradas, aqui a consigna é: ‘No princípio era a ação’, e a ação é que os Conselhos de operários e soldados sintam sua vocação e aprendam a transformar-se no único poder em toda a Alemanha. Não há outra forma de minar o terreno de tal forma que esteja maduro para a derrubada violenta que deve coroar nossa obra” . Já não tinha dúvida a respeito do caráter de classe da representação jurídica, nem da hegemonia sobre os setores pequeno-burgueses que o proletariado devia exercer a partir destes “parlamentos do proletariado”. Sua posição a este respeito perde toda sua ambivalência: a democracia socialista será conselhista.


Notas

[1] Lukács, Georg; “Observações críticas à critica da revolução russa de Rosa Luxemburgo” in: Historia y Conciencia de clase, Ed Grijalbo, México, 1969, p. 291.
[2] Luxemburgo, Rosa; “Greve de massas, partido e sindicatos”, Obras Escogidas, Tomo I, Ed. Pluma, Buenos. Aires, 1976, p. 244.
[3] “A teoria marxista é uma arma segura para reconhecer e combater as manifestações típicas do oportunismo. Mas o movimento socialista é um movimento de massas, seus perigos não são produto das maquinações insidiosas de indivíduos e grupos, surgem de situações sociais inevitáveis. Não podemos nos resguardar de antemão contra todas as possibilidades de desvios oportunistas. Apenas o movimento pode superar esses perigos, com a ajuda da teoria marxista, sim, mas somente depois que esses perigos se tornem tangíveis. Desse ponto de vista, o oportunismo aparece como um produto e uma fase inevitável do desenvolvimento histórico do movimento operário”. em: Luxemburgo, Rosa; “Problemas organizativos da socialdemocracia”, op. cit., p. 157.
[4] Ver a esse respeito: Albamonte, Emilio; Castillo, Christian; Lenin y el partido bolchevique, La Verdad Obrera, 2006.
[5] Ídem, p. 144.
[6] Luxemburgo, Rosa; “Greve de massas, partido e sindicato”, op. cit, p. 237.
[7] Logo após a votação dos créditos de guerra, surgirá a seguinte distinção ou realinhamento das tendências políticas dentro da socialdemocracia: a) a direção do partido estará nas mão da direita – aparato, parlamentares e sindicalistas – os quais, em janeiro de 1917, expulsam as outras tendências e permanecem com o nome de SPD ou Majoritários, já que agrupavam 170 mil militantes, c) Na medida em que a guerra avança e começa a se expressar o descontentamento na base operária e na frente, surge uma ampla de centro que buscará as vias legais e estatutárias para que se expresse a posição anti-belicista. Os representantes desse setor serão, entre outros, Lederbour, Däumin, Dittman e Hesse, núcleo do que logo será a direção do Partido Social-Democrata Independente (USPD), e contará com 120 mil militantes, b) A esquerda, a partir Liebknecht e de Rosa Luxemburgo, organizará uma série de personalidades partidárias, não sendo mais de 50, formarão primeiro a Liga Spartacus dentro do USPD e serão parte do núcleo fundador, em 1918, do Partido Comunista (Espartaquista), d) Os delegados revolucionários de Richard Müller, setor compacto e organizados, estruturado clandestinamente nas principais fábricas de Berlim; Liebknecht entrará em contato com esse setor para que ingressem ao PC(E), mas sem obter sucesso, e) a esquerda de Bremen – onde militam, entre outros, Paul Frölich e Wilheim Pieck.
[8] Expulsa da Escola do partido Rosa, levou adiante seu curso sobre Economia Política e preparou as armas teóricas para seu próximo combate.
[9] Luxemburgo, Rosa; “Problemas organizativos da socialdemocracia”, op. cit., p. 157.
[10] Broué, Pierre; Revolución en Alemania, Tomo I: De la guerra a la Revolución. Victoria y derrota del ‘izquierdismo’, Ed. A. Redondo, Barcelona, 1973, p. 294.
[11] Lênin levará adiante uma enumeração destas lições sobre a organização partidária em O “esquerdismo”, doença infantil do comunismo. Ver também Albamonte, Emilio, Castillo, Christian, Lenin y el partido bolchevique.
[12] Ver E. O. Volkman, La revolution allemande, 9 novembre 1918- 17 mars 1920, ed. Plon, France, 1933.
[13] Ídem, p. 23.
[14] Rosa Luxemburg, Les Masses sont-elles “mures”, Die Rote Fahne, 3 décembre 1918, “Supplément à "La Vérité", 1 février 1959”.
[15] Lenin; El “izquierdismo” enfermedad infantil del comunismo, Ed. Anteo, Bs. As., 1973, p. 33.
[16] Ver Frölich, Paul; Rosa Luxemburgo. Vida y obra, Ed. Fundamentos, Madrid, 1976.
[17] p. 358
[18] Toni Negri, 362
[19] Bensaïd, Daniel; “Politiques de Marx. Des luttes de classes à la guerre civile en France” en Karl Marx, Friedrich Engels, Inventer l´inconnu. Textes et correspondance autour de la Commune, Ed La fabrique, Paris, 2008, p. 79. Também ver Daniel Bensaid, El Estado, la democracia y la revolución: una vez más sobre Lenin y 1917, Revista Viento Sur, 2007.
[20] Ver a este respeito: Loureiro, Isabel Maria. Rosa Luxemburgo. Os dilemas da ação revolucionária, Ed. UNESP, Sao Paulo, 2003.
[21] Luxemburg, Rosa; Crítica de la Revolución Rusa, Ed. Quadrata, Bs. As. 2003, p. 92.
[22] Idem, p. 93.
[23] Idem., p. 89.
[24] Ainda que baseado no voto universal, mediante o qual o campesinato rico, o pobre, o trabalhador ou o intelectual possuem o mesmo peso, a Assembléia Constituinte que propõe Rosa Luxemburgo se desenvolve sob o regime de transição, quer dizer, não inclui a burguesia nem os latifundiários, daí seu caráter semi-burguês. Apenas no terreno da representação política as classes oprimidas são tomadas pelo ponto de vista da igualdade formal.
[25] Rosa Luxemburg; Discours au Congrès de fondation du P. C. Allemand (Ligue Spartacus), 31 décembre 1918 – 1° janvier 1919, en http://www.marxists.org/.
*Artigo traduzido por Fernando Silvério.

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