sábado, 21 de novembro de 2009

A Ordem Reina em Berlim

Por Rosa Luxemburgo (14 de janeiro de 1919)*

A ordem reina em Varsóvia, anunciou o ministro Sebastini à Câmara francesa em 1831 quando, depois de ter lançado um terrível assalto sobre o bairro de Praga, a soldadesca de Paskievitch entrou na capital polaca para começar o seu trabalho de carrascos contra os insurgentes. A ordem reina em Berlim!, proclama triunfalmente a imprensa burguesa, proclamam Ebert e Noske [1], proclamam os oficiais das “tropas vitoriosas”, para quem a gentalha pequeno-burguesa de Berlim agita os lenços e emite os seus hurras. A glória e a honra das armas alemãs foram salvas perante a história mundial. Os lamentáveis vencidos de Flandres e Argonne podem agora restabelecer o seu nome mediante a brilhante vitória atingida sobre 300 “espartaquistas” que lhes resistiram no prédio do Vorwaerts. As façanhas do primeiro e glorioso avanço das tropas alemãs na Bélgica e as façanhas do general von Emmich, o vencedor de Liege, ficam pálidas quando comparadas às façanhas de Reinhardt e Cia. Os delegados dos sitiados no Vorwaerts, enviados como mediadores para tratarem da rendição, assassinados destroçados a pancadas de coronha pela soldadesca governamental, ao ponto que não era possível reconhecer os seus cadáveres. Prisioneiros pendurados dos muros e assassinados de tal forma que muitos deles tinham a massa encefálica espalhada. Quem pensa frente a estas gloriosas façanhas nas vergonhas derrotas diante dos franceses, dos ingleses e dos americanos? Espartacus [2] é o nome do inimigo e Berlim o lugar onde nossos oficiais entendem que vencerão. Noske, "o operário", é o general que sabe organizar a vitória ali onde Lundendorff fracassou.

Como não lembrar da bebedeira de vitória da matilha da “ordem”, aquela festança da burguesia sobre os corpos dos lutadores da Comuna? Era a mesma burguesia que acabava de capitular vergonhosamente aos prussianos e que tinha abandonado a capital do país ao inimigo externo para fugir ela mesma como o primeiro dos covardes! Mas frente aos proletários parisienses famintos e mal armados, contra suas mulheres e filhos indefesos, como voltava a florescer a coragem viril dos filhinhos da burguesia, a "juventude dourada" e os oficiais! Estes filhos de Marte humilhados até o dia anterior ante o inimigo exterior, souberam de repente ser cruéis e bestiais com indefesos, prisioneiros, derrotados.

"A ordem reina em Varsóvia!"”A ordem reina em Paris!” "A ordem reina em Berlim!” Eis como proclamam as suas vitórias os guardiões da "Ordem" cada cinqüenta anos nos centros da luta histórico-mundial. E estes eufóricos “vencedores” não percebem que uma “ordem” que deve ser mantida periodicamente com essas carnificinas sangrentas marcha, invariavelmente a seu próprio final.

O que foi esta “Semana de Espartacus” em Berlim, o que ela trouxe consigo, que lições ela nos deixa? Ainda no meio da luta e dos gritos vitoriosos da contra-revolução, os proletários revolucionários farão balanço dos acontecimentos e os seus resultados com a grande medida da história. A revolução não tem tempo a perder, a revolução continua avançando a suas grandes metas, mesmo que por cima das tumbas abertas, por cima “vitórias” e “derrotas”. A primeira tarefa dos combatentes pelo socialismo internacional é com lucidez seguir seus princípios, seus caminhos. Poderia ser esperada uma vitória definitiva do proletariado revolucionário no presente enfrentamento? Poderia ser esperada a queda dos Ebert-Scheidemann e a instauração da ditadura socialista? Certamente não, quando se leva em consideração todos os elementos chamados a decidir sobre a questão. A ferida aberta da causa revolucionária neste momento, a imaturidade política da massa de soldados que ainda se deixam manipular por seus oficiais com objetivos anti-populares e contra-revolucionários, é uma prova que no presente enfrentamento não era possível esperar uma vitória duradoura da revolução. Por outro lado, a imaturidade do elemento militar não é mais que um sintoma da imaturidade geral da revolução alemã.

O campo, que é de onde procede uma grande parte da massa de soldados, segue como se a revolução nem lhe houvesse tocado. Berlim continua, até agora, praticamente isolada do resto do país. É verdade que nas províncias os centros revolucionários – Renânia, a costa norte, Braunschweig, Saxônia e Wuerttemberg – estão com corpo e alma do lado do proletariado de Berlim. Mas o que falta mais que tudo é coordenação na marcha adiante, a ação comum direta que daria uma eficácia incomparavelmente maior a ofensiva e mobilização da classe operária berlinense. Além disso, as lutas econômicas, a verdadeira força vulcânica que impulsiona adiante a luta de classes revolucionária, ainda estão em seu estágio inicial – o que não deixa de ter profundas relações com as apontadas insuficiências políticas da revolução. Disso tudo pode deduzir-se que neste momento não era possível pensar em uma vitória duradoura e definitiva. Por isto significa que a luta da última semana foi um “erro”? Sim, se fosse meramente uma “ofensiva” intencional, o que se chama de “putsch”. No entanto qual foi o ponto de partido da última semana de luta? Tal como nos casos anteriores, como no dia 6 de dezembro e no dia 24 de dezembro: uma brutal provocação do governo! Como no caso do assassinato dos manifestantes desarmados da Chausseestrasse e igual à matança dos marinheiros, desta vez foi o assalto à sede da polícia a causa de todos os acontecimentos posteriores. A revolução não opera segundo a vontade, não marcha sobre um campo aberto, segundo um plano inteligentemente concebido por seus “estrategistas”. Os seus inimigos também têm a iniciativa, e em regra geral a empregam mais que a própria revolução.

Frente ao fato da descarada provocação dos Ebert-Scheidemann, a classe operária revolucionária se viu obrigada a recorrer às armas. Para a revolução era uma questão de honra dar imediatamente a mais enérgica resposta ao ataque, sobre a pena de encorajar a contra-revolução com seu novo passo adiante e de que as fileiras revolucionárias do proletariado e o crédito moral da revolução alemã na Internacional sofressem grandes perdas.

A imediata resistência colocada pelas massas berlinense foi tão espontânea e cheia de uma energia tão evidente que a vitória moral desde o primeiro momento esteve do lado da “rua”.
Mas existe uma lei interna da revolução que diz que nunca se deve parar, ficar na inatividade, na passividade depois de ter dado um primeiro passo adiante. A melhor defesa é o ataque. Esta regra elementar de toda luta rege todos os passos da revolução. Era evidente – e tê-lo compreendido, testemunha o saudável instinto, a força interior sempre disposta do proletariado berlinense – que não podia se contentar em fazer Eichhorn voltar a seu posto.

Espontaneamente foi lançada a ocupação de outros centros de poder da contra-revolução: a imprensa burguesa, as agências oficiosas de imprensa, o Worwaerts. Todas estas medidas surgiram entre as massas a partir do convencimento de que de sua parte a contra-revolução não se contentaria com a derrota sofrida, mas que buscaria uma prova geral de sua força.

Aqui também nos deparamos com uma das grandes leis históricas da revolução, contra a qual se chocam todas as habilidades e sabedorias dos pequenos "revolucionários" ao estilo dos do U.S.P., que em cada luta não se preocupam com nada além de uma coisa, pretextos para bater em retirada. Uma vez que o problema fundamental da revolução tinha sido colocado com toda clareza – e este problema nesta revolução é a derrubada do governo Ebert-Scheidemann, enquanto primeiro obstáculo para a vitória do socialismo – então, esse problema não deixa de se mostrar repetida vezes com toda a atualidade e fatalidade de uma lei natural; todo episódio isolado de luta faz este problema aparecer em todas suas dimensões, esteja a revolução pouco preparada para lhe dar resposta, ou esteja pouco madura a situação. “Abaixo Ebert-Scheidemann!” é a consigna que inevitavelmente aparece em cada crise revolucionária, uma vez que é a única fórmula que esgota todos os conflitos parciais, e que por sua lógica interna, queira-se ou não, empurra todo episódio de luta a suas mais extremas conseqüências.

O resultado desta contradição entre o caráter extremo das tarefas a realizar e a imaturidade das condições prévias para sua realização na fase inicial do desenvolvimento revolucionário, é que cada batalha termina, formalmente, em uma derrota. Mas a revolução é a única forma de "guerra" – e está é uma lei muito particular dela – na qual a vitória final só pode ser preparada através de uma série de “derrotas”. O quê é que nos mostra toda a história das revoluções modernas e do socialismo? A primeira centelha da luta de classes na Europa, o levantamento dos tecelãos de seda em Lion em 1831 terminou em duríssima derrota. O movimento cartista na Inglaterra também terminou em uma derrota. A insurreição do proletariado de Paris nos dias de junho de 1848 terminou em uma assoladora derrota. A Comuna de Paris se fechou com uma terrível derrota. Todo o caminho que conduz ao socialismo – se forem consideradas as lutas revolucionárias – está semeado de grandes derrotas.

E, mesmo assim, esse caminho conduz, passo a passo, inexoravelmente à vitória final! Onde estaríamos hoje sem estas "derrotas", das quais tiramos experiência histórica, conhecimento, força, idealismo! Hoje, quando chegamos tão extraordinariamente próximos da batalha final da luta de classes do proletariado, nos apoiamos diretamente nessas derrotas e não podemos renunciar a nenhuma delas, todas formam parte de nossa força e nossa clareza quanto às metas a alcançar.

As lutas revolucionárias são justamente o oposto das lutas parlamentares. Na Alemanha tivemos, ao longo de quatro décadas, sonoras “vitórias” parlamentares, precisamente marchávamos de vitória em vitória. E o resultado de tudo isto foi quando chegou o dia da grande prova histórica, quando chegou o 4 de agosto de 1914: uma aniquiladora derrota política e moral. Um naufrágio sem precedentes. As revoluções, ao contrário, até agora não nos têm aportado mais que graves derrotas, mas estas derrotas inevitáveis têm acumulado uma sobre a outra a garantia necessária de que alcançaremos a vitória final no futuro.

Mas com uma condição! É necessário questionar em que condições ocorreram as derrotas em cada caso. A derrota ocorreu porque a energia combativa das massas se chocou contra as barreiras de umas condições históricas imaturas ou devido à mornidão, à indecisão, à fraqueza interna que acabou paralisado a ação revolucionária? Dois exemplos clássicos de ambos os casos poderiam ser, respectivamente, a revolução de fevereiro na França e a revolução de março na Alemanha. A ação heróica do proletariado de Paris em 1848 converteu-se na energia de classe para todo o proletariado mundial. Por outro lado, os deploráveis acontecimentos da revolução de março na Alemanha entorpeceram a marcha do desenvolvimento da Alemanha moderna como uma bola de ferro presa aos pés. Estes acontecimentos exerceram sua influência em toda a história particular da Social-Democracia Alemã oficial, chegando inclusive a repercutir nos mais recentes acontecimentos da revolução alemã, inclusive na dramática crise que acabamos de viver.

Como será vista, em tal caso, a derrota da chamada Semana de Espartacus à luz da mencionada perceptiva histórica? Como uma derrota causada pelo ímpeto da energia revolucionária que se chocou com uma situação não madura ou devido às debilidades e indecisões de nossa ação?
De ambas as formas! O caráter duplo desta crise tem sido um dos dados peculiares do episódio mais recente, a contradição entre a intervenção das massas berlinenses, ofensiva, cheia de força, decidida e a indecisão, as vacilações, a timidez da direção. A direção falhou. Mas a direção pode ser criada de novo pelas massas e a partir das massas. As massas são o decisivo, elas são a rocha sobre a qual se baseia a vitória final da revolução. As massas estão à altura, elas fizeram desta “derrota” uma peça mais desta série de derrotas históricas que constituem o orgulho e a força do socialismo internacional. E por isto, florescerá desta “derrota” a vitória futura.

“A ordem reina em Berlim!” Estúpidos lacaios! Vossa “ordem” está construída sobre a areia. A revolução amanhã “se levantará de novo brandindo suas armas com estrondo” e proclamará com suas trombetas: “Era, sou e serei!”

*Este foi o último artigo de Rosa Luxemburgo, escrito no dia anterior a sua morte. Nele reflete sobre o significado histórico da derrota do levantamento de Berlim e sua relação com a revolução socialista internacional. Tradução realizada a partir da versão portuguesa publicada em www.marxists.org e cotejada com a versão em espanhol e inglês do mesmo sítio. Realizada por Leandro Ventura. [Extraído do site da LER-QI]

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